New Order empolga os peruanos
Os peruanos que foram à Explanada Sur del Estadio Monumental, o “templo sagrado” de “La U” (apelido que a fanática torcida do Universitario deu ao seu amado time de futebol), em Lima, viram nesta última sexta-feira mais do que a primeira e histórica apresentação do New Order em seu país. É bem provável que aqueles jovens (e centenas de “não tão jovens assim”) descendentes dos Incas tenham sido os privilegiados participantes de uma experiência rara.
Não apenas eles, é claro. Eu e mais sete brasileiros voamos por mais de cinco horas até Lima com uma estranha sensação em nossas cabeças e em nossos corações – e desta vez não tinha a ver com a ausência, que nunca deixará de ser sentida, de Peter Hook. O show na Explanada Sur, até onde minha memória de fã pode alcançar (e suponho que ela é boa o suficiente), fugiria completamente de qualquer coisa que banda tivesse feito antes, fosse esse concerto bom ou ruim. Pela primeira vez o New Order se apresentaria como uma “banda de arena”, num espaço habituado a receber mega-astros milionários da música como Roger Waters, Kiss, Guns’N Roses e até super-DJs como David Guetta e Tiesto. O New Order já fez shows ao ar livre antes (e que, inclusive, saíram em DVD), mas nestes casos o grupo havia sido escalado para festivais e dividia o palco com outras atrações. Nessas ocasiões, alguns shows eram até bem curtos (vide o da edição brasileira do Ultra Music Festival, em 2011). Desta vez é diferente: em Lima o New Order vem sendo abordado como um supergrupo-celebridade e não como uma banda de rock/eletrônico alternativo. Mesmo para quem já os viu em outras ocasiões, como nós, foi difícil segurar a expectativa.
De uma certa maneira, era isso o que a banda pretendia com essa atual turnê. Recentemente, o vocalista e guitarrista Bernard Sumner declarou ao “National Post” que a estratégia no momento é tocar em lugares onde nunca estiveram antes. “Por que nós somos tão grandes na Coréia do Sul? No Chile nós somos como os Beatles. Nós tocamos em um festival na Cidade do México ao mesmo tempo que um outro artista famoso, só que nós tivemos 55.000 pessoas vendo o New Order e o outro tinha apenas 7.000. Desde então eu descobri o segredo do sucesso na indústria musical: não faça nenhuma divulgação. Não faça shows em um lugar específico e não lance discos lá e você vai ser grande”, disse Sumner. Quem não se lembra de 2006? A banda não tinha mais um single sequer tocando nas rádios comerciais brasileiras desde 1993 (com “Regret”) e, só em São Paulo, foram dois shows com ingressos esgotados...
Mas então voltemos a Lima... A Explanada Sur, na verdade uma espécie de estacionamento ao lado do Estádio Monumental, levou tempo para encher e, talvez, a explicação para isso fosse o trânsito barra-pesada da capital peruana. Às 21:00, horário programado para início do show, ainda sobravam espaços vazios na arena. Isso talvez explique porque o concerto começou com um atraso de, exatamente, uma hora. Quando o New Order subiu ao palco, às 22:00, o lugar já estava, finalmente, cheio. A entrada da banda se deu ao som de “The Ecstasy of Gold”, um dos temas de Ennio Morricone feitos para a trilha do filme Três Homens em Conflito, de Sergio Leone.
Em seguida, após Sumner cumprimentar o público, inclusive com palavras em espanhol (“Viva el Pisco! Viva la comida! Viva el Perú, caracho!”), a banda abriu o show com a atmosférica “Elegia”, que, na verdade, vem sendo usada como uma espécie de longa introdução para a pulsante “Crystal”. Aliás, de todas as versões ao vivo que eu conheço, das que foram lançadas oficialmente às que eu tive oportunidade de presenciar in loco, esta tocada em Lima foi a melhor. Inclusive, uma nota errada no segundo solo de baixo levou Tom Chapman a improvisar e terminá-lo de uma maneira diferente. Mas soou tão bom que no terceiro solo o substituto de Peter Hook decidiu desta vez mudá-lo de propósito, o que o deixou ainda melhor.
Depois de “Crystal” veio o primeiro momento de catarse do show: “Regret”. Legal ver o povo todo pulando e cantando. E tenho que admitir que um hit ganha ainda mais impacto quando tocado em área aberta e com um grande público. Por outro lado, quando se decide arriscar, logo em seguida, uma música nova num espaço tão grande o fiasco parece ainda maior. Foi o caso de “I’ll Stay With You”, do último CD da banda, Lost Sirens. Era a primeira execução da música ao vivo e apesar de ser uma das melhores faixas do álbum a reação do público foi fria.
Mas a banda retomou rapidamente o ponto de fervura – com “Ceremony” o público entrou em descontrole mais uma vez. Na sequência, com “Age of Consent”, mais delírio e êxtase. Quando parecia que não podia ficar melhor, os caras soltaram o primeiro tributo ao Joy Division da noite, “Isolation”, aqui em uma versão “turbinada”. A escolha não poderia ter sido mais apropriada – a música que começa a transição, no show, de um som mais rock para o lado mais techno da banda é justamente uma daquelas que já prenunciavam o caminho que mais tarde seria seguido pelos remanescentes do Joy Division no New Order.
E foi nos tempos do Joy Division que Ian Curtis, seu mítico e finado vocalista, apresentou aos demais colegas de banda os alemães do Kraftwerk, uma das inspirações do New Order, em especial na faixa que veio a seguir, “Your Silent Face”, também conhecida como “KW1” (sigla de “The Kraftwerk One”). Continua bela como sempre, mas desta vez foi um pouco prejudicada, sobretudo na introdução, pelo alto volume da melodica de Sumner, o que a fez soar estridente demais. Entretanto, com Gillian Gilbert e Phil Cunningham tocando juntos, em uníssono, os trechos “orquestrais”, a canção ganhou uma grandiosidade sinfônica comparável apenas à da versão original de estúdio.
Eis que então veio a segunda surpresa da noite: “Touched by the Hand of God”, de volta ao repertório depois de um longo período fora dos set lists e agora com um novíssimo arranjo. Fica a torcida para que se mantenha e se torne peça permanente na turnê. Pessoalmente, gostei muito da nova versão, cuja introdução se baseou no remix de Biff & Memphis lançado em The Rest of New Order em 1995. Logo depois, o New Order deu ao público uma oportunidade de recuperar o fôlego quando sacou “Krafty”. É um ótimo single, mas ao vivo a canção não soa tão sedutora.
Foi então que Sumner, Gilbert, Morris, Cuningham e Chapman vieram com o segundo momento de pico da noite: “Bizarre Love Triangle”. A Explanada Sur veio abaixo. O público cantou do início ao fim a plenos pulmões. Foi aprovada com louvor no teste de popularidade ao lado de “Regret”. Nesse momento o New Order deu início ao seu bailão eletrônico e transformou o lugar numa grande discoteca ao ar livre.
E ficou constatado que Power, Corruption and Lies , de 1983, foi o álbum mais bem representado nessa noite – foram três temas. O último deles, tocado imeditamente após “Bizarre Love Triangle”, foi “5-8-6”, que também não deixou ninguem parado. Tanto que se formou um pogo bem próximo ao palco! Afinal, alguem não escreveu alhures certa vez que “punks de verdade fazem dance music”?
O bloco final foi matador: “True Faith”, “The Perfect Kiss” (com direito a outro pogo no meio da multidão), a trintona “Blue Monday” (o terceiro grande momento de descontrole coletivo do concerto) e, para variar, “Temptation”. Em outras palavras: o créme de la créme de seus 32 anos de carreira.
Então veio o “pseudo final” do show. A banda se retira. O público fica e espera apenas uns cinco minutos até a turma voltar para a encore. Sumner anuncia: vem aí um bloco de músicas do Joy Division. Começam com “Atmosphere”, que, apesar de ter emocionado o público (com uma ajudinha do vídeo do Anton Corbijn exibido no telão), soou um pouco “embolada” devido ao alto volume. Em seguida, para ajudar a platéia a enxugar as lágrimas, vieram com “Transmission”. O final de verdade, é claro, não foi surpresa para ninguem: “Love Will Tear Us Apart”. Espanto mesmo (e um pouco de indignação também) os peruanos sentiram quando Bernard Sumner terminou o concerto com a seguinte pérola: “Muito obrigado. Vocês foram uma platéia maravilhosa, estamos muito felizes de estar aqui no Chile”.
Passada a euforia do que se viu sobre aquele palco na noite de ontem, era hora de refletir. A verdade é: se o concerto em Lima foi bom ou não é uma questão de perspectiva. Aqueles que gostariam de ter visto o “velho New Order”, isto é, a banda que errava na maioria das músicas, que não fazia encores, que não se dirigia ao público (ou que, às vezes, até brigava com a platéia) e que mudava o set list todas as noites, certamente não teriam saído satisfeitos desse show. O que se viu na capital peruana foi a consolidação de mais uma metamorfose de um grupo que fez disso sua essência desde que o suicídio de Ian Curtis fez desmoronar o Joy Division. O New Order de agora não parecia um peixe fora d’água na Explanada Sur: pelo contrário, é nesse contexto que seu novo jeito de fazer as coisas, ou seja, projeção de vídeos, um set list que praticamente se repete todas as noites, pouquíssimos erros, uma certa atitude populista ante ao público (com frases do tipo “We love [nome da cidade onde estão tocando], vocês são uma platéia maravilhosa”), realmente faz sentido.
Ok, ninguem é obrigado a gostar de uma guinada de 180º como essa. Mas como é mesmo o nome dessa banda?
Pontos positivos: 19 músicas (quase duas horas de show, um pouco acima da média dos últimos concertos da banda), o debut ao vivo de uma faixa de Lost Sirens (“I’ll Stay With You”), o grupo “desenterrou” a excelente “Touched by the Hand of God”.
Pontos altos do show: “Regret”, “Ceremony”, “Bizarre Love Triangle”, “Blue Monday” e toda a encore dedicada ao Joy Division.
Pontos negativos: “World” e “Hellbent”, que foram tocadas na passagem de som, acabaram não sendo incluídas no show; o excesso de músicas que nunca mudam em todos os concertos desde que a turnê pelo mundo começou em 2011 (doze ao todo); Bernard Sumner confundindo Peru com Chile duas vezes.
SET LIST:
Elegia
Crystal
Regret
I’ll Stay With You
Ceremony
Age of Consent
Isolation
Your Silent Face
Touched by the Hand of God
Krafty
Bizarre Love Triangle
5-8-6
True Faith
The Perfect Kiss
Blue Monday
Temptation
Atmosphere (encore)
Transmission (encore)
Love Will Tear Us Apart (encore)
Vídeo de "I'll Stay With You"
Crédito fotos: Lukas Isaac / Terra Perú