New Order e o cinema

05/03/2014 09:53

Algumas bandas possuem em suas biografias contribuições para o cinema. O New Order é um desses casos, já que suas canções extrapolaram o território da indústria fonográfica e marcaram presença, também, nas telonas. Entretanto, a relação do New Order com o cinema não se restringe apenas a canções em trilhas sonoras de filmes. Além da banda já ter sido ela própria retratada em produções cinematográficas, principalmente em sua "primeira encarnação" (Joy Division), sua obra registra algumas citações à sétima arte. 

A primeira vez que o som do New Order foi "visto" no cinema foi em 1986, com o filme Pretty in Pink ("A Garota de Rosa Shocking" no Brasil), dirigido por Howard Deutch e com roteiro e produção executiva de John Hughes. Três canções da banda dão o ar da graça na película: "Thieves Like Us", "Elegia" (instrumental) e "Shellshock". Entretanto, apenas "Shellshock" foi incluída no LP da trilha sonora. O filme foi um sucesso mundial, fora o extra de ter sido exaustivamente reprisado na "Sessão da Tarde" da TV Globo durante muitos anos. Além disso, Pretty in Pink foi um dos grandes responsáveis por tornar a música do New Order mais popular nos Estados Unidos.

Ainda em 1986, uma versão de "Temptation" foi usada na trilha sonora de Something Wild ("Totalmente Selvagem"), de Jonathan Demme, o mesmo diretor que se consagraria em 1991 com o hoje clássico O Silêncio dos Inocentes. Vale lembrar que a relação entre Demme e o New Order se iniciou um ano antes: foi o norteamericano quem havia dirigido o clipe de "The Perfect Kiss". Demme provavelmente ficou "ligado" no som do New Order, já que em 1988 usou um remix de "Bizarre Love Triangle" na trilha de um outro filme seu, Married to the Mob ("De Caso com a Máfia").

E foi justamente em 1988 que o New Order compôs pela primeira vez canções sob encomenda para a trilha de um filme, nesse caso Salvation!, de Beth B. A trilha sonora desse filme também contou com a colaboração de outros nomes como Cabaret Voltaire e Arthur Baker, mas o New Order é o artista com o maior número de contribuições: "Salvation Theme", "Touched by the Hand of God", "Sputnik", "Skullcrusher" e "Let's Go" (versão instrumental). Também foi em 88 que, por ocasião do lançamento do remix de Quincy Jones para "Blue Monday", o designer oficial da banda e da Factory Records, Peter Saville, criou para a capa do single uma imagem inspirada no computador HAL 9000, do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. 

Aliás, essa inclusive não foi a primeira vez que 2001 foi citado pelo New Order: a faixa instrumental "Murder", originalmente lançada em single em 1984, trazia, samples de falas do HAL 9000 ("I wouldn't do that, Dave... I'm afraid, Dave... My mind is going... There's no question about it..."). Além disso, "Murder" também contém uma fala sampleada do filme Caligola, de Tinto Brass ("Crows, crows, crows! I hate them!"). Para consolidar a "alma cinematográfica" dessa canção, em 1987 ela foi incluída na trilha sonora do filme inglês Empire State, de Ron Peck. A trilha também possui músicas das bandas The Communards e Yello.

 

"Murder" não foi a única que vez que o New Order usou diálogos de filme como samples em uma gravação de estúdio: na faixa instrumental "Don't Do It", lado B do single "Fine Time", de 1988, há no final um rápido e cavernoso falatório. Trata-se de uma fala distorcida e reproduzida ao contrário extraída do filme O Exorcista, de Willian Friedkin ("Your mother sucks something"). Seguindo essa mesma linha, não poderíamos deixar de citar um dos remixes mais bizarros e divertidos já feitos para uma canção do New Order, no caso o "Dakeyne Mix" de "Blue Monday", de autoria do DJ Paul Dakeyne, no qual se pode ouvir uma verdadeira salada de samples, não somente de diálogos e trilhas de filmes, mas também de canções alheias. Dentre as citações cinematográficas, constam falas de 007 ("My name is Bond... James Bond"), Dirty Harry e Mission: Impossible (a série clássica).

Falando em remixes, o mais famoso a entrar na trilha de um filme certamente foi o "Reconstruction Mix" que o DJ Pump Panel fez para o single "Confusion", original de 1983, e que foi usado em Blade (1998), de Stephen Norrington, estrelado por Wesley Snipes. Muitos consideram a cena do banho de sangue na pista de dança ao som dessa faixa uma das melhores combinações entre música e imagem do cinema de ação, embora o mix seja uma completa descaracterização da faixa original - a única coisa que remete à gravação de 83 é uma voz de robô repetindo o refrão ("You just can't believe me when I show you what you meant to me"). Vale mencionar que a faixa (isto é, o remix) foi lançada três anos antes do filme em single pelo próprio Pump Panel e, também, pelo New Order no CD The Rest of New Order.

Na verdade, a partir de 1994 a banda ficou "fora do ar" por um longo período e durante esse hiato o exemplo de Blade foi seguido e canções antigas foram usadas em produções cinematográficas novas, como "Temptation" em Trainspotting (1996), "Blue Monday" em The Wedding Singer ("Afinado no Amor", 1998) e "Bizarre Love Triangle" em Splendor (1999). Embora a banda tivesse voltado a se reunir para fazer shows em 1998, o primeiro material inédito pós-reapariação só deu as caras em 2000 e foi justamente uma contribuição para o cinema: a música "Brutal", incluída na trilha sonora de The Beach ("A Praia"), dirigido por Danny Boyle e com Leonardo DiCaprio no papel principal. Não por acaso, foi Boyle quem dirigiu Trainspotting, que, como dissemos logo acima, também tinha o New Order na trilha.

E foi justamente nos anos 2000 que a relação entre o New Order e o cinema se estreitou ainda mais. Em 2002 foi lançado o filme 24 Hour Party People ("A Festa Nunca Termina"), de Michael Winterbottom, uma comédia baseada em fatos reais que conta a história da cena musical indie em Manchester, do lendário show dos Sex Pistols no Lesser Free Trade Hall em 1976 até a crise do nightclub The Haçienda, passando ainda pela curta carreira do Joy Division (encerrada com o suicídio do vocalista Ian Curtis), o recomeço como New Order, as loucuras da turma do Happy Mondays, a ascenção e queda da Factory Records etc. Para o filme, a banda contribuiu com uma faixa inédita co-escrita com os Chemical Brothers, que também assinam a produção: "Here to Stay". 

Também não foi a única vez que o grupo foi transformado em personagens da telona. A história do Joy Division foi mais profundamente destrinchada, só que desta vez em tom sério, no filme Control, primeira experiência do fotógrafo e diretor de videoclipes holandês Anton Corbijn no cinema. Com especial dedicação à figura de Ian Curtis, o filme de Corbijn, lançado em 2007, também trazia em sua trilha sonora faixas inéditas escritas e gravadas pelos três integrantes remanescentes do Joy Division que, por sua vez, formariam o New Order original em 1980. Fizeram três canções curtas, instrumentais, em estilo ambient: "Exit", "Hypnosis" e "Get Out". Para a tristeza dos fãs, estas viriam a ser as três últimas gravações feitas pelo New Order com o baixista Peter Hook na banda. 

 

Mesmo sem seu baixista original, o New Order segue em frente e vem prometendo material novo. Logo, os fãs podem ter certeza que o relacionamento da banda com o cinema deve perdurar pelos próximos anos. Afinal, esses músicos parecem ter tanto interesse por filmes quanto gostam de música. Que o diga Bernard Sumner: em 2007, durante uma visita à casa de Johnny Marr, com quem formou o duo Electronic nos anos 90, um amigo do ex-guitarrista do The Smiths estava lá a assistir o filme Bad Lieutenant ("Tenente Mau"), de Abel Ferrara. Daí Sumner tirou a inspiração para o nome do grupo que havia formado com os guitarristas Phil Cunningham e Jake Evans logo após a saída de Peter Hook do New Order. 

Isso não foi convincente o suficiente? Então aqui vai um derradeiro (e definitivo) argumento: segundo o livro 24 Hour Party People: What the Sleeve Notes Never Tell You, de Tony Wilson, o nome New Order, escolhido para sugerir a ideia de mudança após o fim do Joy Division com a morte de Ian Curtis, foi sugestão do (hoje falecido também) empresário Rob Gretton após ele ter assistido um filme (documentário) sobre o Khmer Vermelho (grupo de seguidores do Partido Comunista no Camboja), que mudou seu nome para New Order of Kampuchean Liberation ("Nova Ordem da Libertação Kampuchea").