"Ensaio sobre a lucidez", de José Saramago [Companhia das Letras, 325 páginas]

05/07/2013 08:43

José Saramago tirou o posto de Franz Kafka de "Meu Escritor Favorito" depois que assisti Blindness - Ensaio Sobre a Cegueira no cinema. Não tinha lido o livro que deu origem ao filme de Fernando Meirelles, mas gostei tanto do que vi na telona que pensei duas coisas: (1) "mesmo que alguem diga que é uma péssima adaptação, isto quer dizer que o livro deve ser magistral"; e (2) "quem escreve uma história destas é mais que um ótimo escritor, é quase um filósofo, alguem que pensa sobre nossa sociedade e o mundo em que vivemos". Mas antes de ver Blindness, eu já tinha "lido Saramago" em entrevistas, inclusive uma para a Playboy pouco depois dele ser laureado com o prêmio Nobel de literatura - e desde então nutri simpatia pela sua maneira de pensar e pelo modo de expressar o que pensa. Todavia, minha "Saramagomania" começou de fato quando li As Palavras de Saramago - uma coletânea de fragmentos de entrevistas agrupados por assuntos como literatura, política, religião, etc. - e As Intermitências da Morte (que ganhei de presente de minha esposa). Depois disso vieram, na seguinte sequência: Caim (que virou um dos meus favoritos), Ensaio Sobre a Cegueira e A Jangada de Pedra.

 

Agora estou mergulhado nas páginas de Ensaio Sobre a Lucidez, que havia ganho de Natal do meu pai. Esperou um tempo para ser lido porque, na ocasião, eu estava lendo A Peste, de Albert Camus, e, depois, me enfiei no O Falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello. E acabou sendo uma feliz coincidência começar a lê-lo no atual momento pelo qual o país atravessa. Acho que o trecho a seguir, quando li, me transmitiu de imediato um certo ar de familiaridade:

 

"Uma manhã as ruas da capital apareceram invadidas por gente que levava ao peito autocolantes com vermelho sobre negro, as palavras, Eu votei em branco, das janelas pendiam grandes cartazes que declaravam, negro sobre vermelho, Nós votamos em branco, mas o mais arrebatador, o que se agitava e avançava sobre as cabeças dos manifestantes, era um rio interminável de bandeiras brancas que levaria um correspondente  despistado a correr ao telefone para informar o seu jornal que a cidade se havia rendido. Os altifalantes da polícia esgoelavam-se a berrar que não eram permitidos ajuntamentos de mais de cinco pessoas, mas as pessoas eram cinquenta, quinhentas, cinco mil, cinquenta mil, quem é que, numa situação destas, se vai pôr a contar de cinco em cinco. O comando da polícia queria saber se podia usar os gases lacrimógenos e carregar com os camiões da água (...)"

 

 

Na atual conjuntura, é difícil não fazer qualquer paralelo entre a "lucidez" despertada nos brasileiros nas últimas semanas e aquela aflorada nos concidadãos na capital do país indeterminado do livro de Saramago. Mas qual é a trama do livro afinal de contas? Vamos lá: num dia de eleições, bastante chuvoso por sinal, quase ninguem aparece para votar; de repente, quando faltam poucas horas para se encerrar o pleito, aparece uma multidão formando filas para depositar seus votos nas urnas; após a apuração, veio a surpresa: mais de 70% dos votos foram brancos. A situação inusitada leva o governo a repetir a votação no fim de semana seguinte, cujo o resultado foi... mais de 80% dos votos em branco! A perplexidade do governo o conduz a decretar estado de exceção e iniciar uma operação com o objetivo de identificar um possível "inimigo interno" que estaria "conspirando contra a democracia". Essa operação, que consistia em infiltração de agentes entre as massas e até detenção de cidadãos para interrogatório, manobras típicas de governos autoritários, não funciona, então apela-se para o extremo, o estado de sítio. É quando a população "se rende" (tal como descrito no fragmento acima) e assume com veemência sua escolha - um duríssimo recado aos governantes afinal. Estes, porém, tomam uma atitude inusitada: deixarão a "cidade insurgente" entregue a si mesma. Não haverá mais governo, nem polícia, nem exército, etc. Eis algo que só poderia sair da imaginação saramagoniana.

 

E vejo que não poderia ter escolhido melhor momento para ler esse livraço.