Decifrando as Capas - Parte I: Movement (1981)

03/11/2013 19:06

 

Quando o Orkut ainda era a bola da vez em termos de redes sociais, um sujeito na comunidade “New Order Brasil” escreveu que a capa de Movement era tão simplória que até mesmo o filho pequeno dele seria capaz de criá-la. Bem, não me recordo se ele utilizou essas mesmas palavras, mas estou certo de que era exatamente isso o que ele quis dizer. Pois é, esse era o “nível” geral do pessoal que frequentava aquela comunidade para discutir as diversas faces de uma banda que, de “simples”, tinha apenas sua técnica musical – um aspecto que, aliás, não deixa de ser discutível também.
 
E o fato é que, para a infelicidade daquele pai coruja, o filho dele, por mais prodigioso ou precoce que fosse, jamais poderia criar uma capa como a de Movement, ou pelo menos ter a sacada que o designer Peter Saville teve para apresentar em uma embalagem apropriada aqueles 36 minutos e 12 segundos de música. Afinal, a função de uma capa não é apenas guardar o disco, protegê-lo da poeira e ter o nome do artista na frente para uma pura e simples identificação. Aliás, no passado até era assim... Mas design tem a ver com a relação entre forma e conteúdo. É que as pessoas, em geral, não estão instruídas o suficiente para decifrar a conexão entre as duas coisas... ou, pelo menos, quando essa conexão não é tão óbvia.
 
Bernard Sumner, Peter Hook, Gillian Gilbert e Stephen Morris não batizaram o álbum de estreia do New Order com o nome Movement por acaso. Quando estiveram pela primeira vez no Brasil em 1988, Hooky disse à Bizz (à respeito do suicídio de Ian Curtis e da transição de Joy Division para New Order) que “o choque foi tão grande que tínhamos que nos manter ocupados... não ficamos parados dizendo ‘vamos fazer isso, vamos fazer aquilo’... o que fizemos foi meter a mão na massa”. O que em outras palavras, quer dizer: eles decidiram se mexer, se puseram em movimento. Não queriam, nem podiam parar. Movement foi a primeira coisa que fizemos do zero”, arrematou o (agora ex-)baixista, já que a primeira gravação deles como New Order tinha sido um single com duas canções escritas ainda como Joy Division, “Ceremony” e “In a Lonely Place”, e cujas únicas versões com os vocais de Ian Curtis existentes não passavam de gravações demo ou ao vivo.
 
O título certamente foi o grande eixo de ligação. Ele representava essa vontade desesperada de superação, essa necessidade de não ficar parado pensando no trauma, ímpetos presentes inclusive no novo nome que banda veio adotar (“nova ordem”). O desejo de mudança, o olhar para frente, também estavam manifestos no som através de uma presença mais incisiva de sintetizadores e de percussão eletrônica. Com esses elementos, Peter Saville procurou nas suas influências das vanguardas artísticas do século XX referências que pudessem conectar a música do New Order aos seus heróis das artes plásticas. 
 
Nada mais inteligente do que associar o primeiro disco do New Order ao futurismo, movimento artístico surgido na Itália no início do século XX. Em primeiro lugar, porque o futurismo utilizava a propaganda como a principal forma de comunicação – e ela é o berço do design gráfico. Em segundo, os futuristas valorizavam o desenvolvimento industrial e tecnológico – daí vem a conexão com o interesse cada vez mais evidente da banda pelas tecnologias musicais, principalmente sintetizadores. Terceiro: esses artistas eram obcecados pela velocidade e pelo movimento (que atribuíam ao desenvolvimento da tecnologia), conceito que estabelecia um link imediato com o título do álbum (e com tudo o mais sobre o qual já falamos). E havia ainda um extra (na verdade uma “brincadeirinha perigosa”): como se já não bastassem as suspeitas sobre as verdadeiras conotações em torno do nome New Order (afinal, anteriormente essa mesma banda teve a desfaçatez de se chamar Joy Division!), o futurismo também ficou conhecido por ter alinhado seu discurso ao projeto político fascista e... bem, vocês já entenderam o que eu quis dizer.
 
Voltando ao projeto gráfico de Movement: Peter Saville decidiu fazer uma clara homenagem aos futuristas elaborando uma arte que fazia explícita referência a um cartaz feito em 1932 pelo futurista Fortunato Depero (1892-1960), utilizando as mesmas cores e a mesma tipografia. A única modificação feita por Saville se deu na parte inferior da capa, deslocando a barra vertical azul do centro para a esquerda. Isso tinha um propósito: se virarmos a capa no sentido horário, no lado direito passamos a enxergar uma espécie de “F.”; mas se em seguida revirarmos a capa no sentido anti-horário, teremos agora um “L.”. O “F.” seria uma referência ao prefixo “Fact.”, de Factory Records; já o “L.” significa “50” em algarismos romanos. Em outras palavras, é uma referência ao código de catalogação do álbum na gravadora Factory – FACT. 50 – que inclusive aparece impresso e em evidência abaixo do nome da banda. Vale citar que naquela época, Saville costumava colocar em destaque nas artes que fazia para os discos da Factory informações que para a grande maioria dos designers e gravadoras eram consideradas irrelevantes e sempre impressos com fontes minúsculas e em cantos quase invisíveis nas contracapas (como o código de catálogo e o ano de lançamento).

 

 

 

 

Movement foi lançado em novembro de 1981. No mês seguinte, a Factory Records lançou o segundo single do New Order, “Procession” (que tinha “Everything’s Gone Green” no lado B). Para esse sete polegadas, Saville utilizou Depero novamente – desta vez foi a ilustração da capa da segunda edição da revista “Dinamo Futurista”, publicada originalmente em março de 1933 – dando prosseguimento ao conceito desenvolvido para o álbum de estreia da banda.

Com as capas do New Order, Saville homenageou ou “citou” vários gêneros/nomes das artes plásticas, não se restringindo apenas ao futurismo. Dentre as referências, inclui-se o realismo (o álbum Power, Corruption and Lies ), o surrealismo (os singles “Thieves Like Us” e “Murder”), o letrismo (“Confusiuon”, “Run 2”) e o ready made (a série “State of the Nation”, “Bizarre Love Triangle” e Brotherhood ). O que me pergunto agora é: será que aquele paizão coruja continuaria pensando que seu filhinho prodígio criaria uma capa igual à de Movement depois de ler este artigo?