"Chapter and Verse" (Bernard Sumner): um livro, duas maneiras de se contar uma história

02/03/2015 10:54

Declarações recentes de Peter Hook dão a entender que a animosidade entre ele e Bernard Sumner, com quem fundou os seminais Joy Division e New Order nas décadas de 1970 e 1980, que ganhou espaço na imprensa musical desde a ruptura da dupla (ocorrida em 2007), já existia há bastante tempo, só que de forma não pública. Porém, com o lançamento de Chapter and Verse: New Order, Joy Division and Me (Bantam Press, 343 páginas), o livro de memórias de Sumner, em setembro do ano passado, as tensões entre os dois chegaram a um novo round: afinal "Hooky" já havia saído na frente algum tempo antes com The Haçienda: How Not to Run a Club e Unknown Pleasures: Inside Joy Division (Simon & Schuster Editions, respectivamente 224 e 336 páginas), nos quais o ex-baixista do New Order conta, também a partir de suas próprias lembranças, histórias sobre o nightclub FAC 51 The Haçienda e sobre o Joy Division. 

As linhas a seguir contém as nossas impressões sobre a autobiografia de Sumner, apesar de já terem se passado cinco meses do seu lançamento na Inglaterra.

Nosso exemplar de Chapter and Verse: New Order, Joy Division and Me (em uma tradução livre: "De Cór: New Order, Joy Division e Eu"), com capa dura e jacket, foi adquirido durante o Carnaval em uma viagem à Barcelona, mais especificamente na livraria La Central no bairro do Ravall, e custou € 27 (aproximadamente R$ 88). O papel e a impressão utilizados são de excelente qualidade e há duas seções com fotos preto-e-branco e coloridas do acervo pessoal de Sumner impressas em papel couché. Trata-se de um produto muito bem apresentado, digno de um personagem importante tanto para a música popular quanto para a cena alternativa das últimas três décadas. No entanto, nos chamou a atenção o fato da Bantam Press não ter lançado o livro em uma versão brochura, com um preço mais em conta, como costuma ser de praxe.

 

Como autobiografia / livro de memórias, Chapter and Verse é um livro um tanto incomum - para não dizer estranho. Nos dez primeiros capítulos, que cobrem um longo período que vai da infância de Sumner em Salford (Grande Manchester, norte da Inglaterra) até o suicídio de Ian Curtis e o fim da "primeira encarnação" do New Order, o Joy Division, o guitarrista / vocalista empregou uma forma narrativa mais ortodoxa, "cronológica" digamos, relatando os fatos  e os acontecimentos segundo a sequência dos momentos: o início da amizade com Peter Hook nos tempos de escola, a adolescência e a descoberta da música (do rock, evidentemente), o show dos Sex Pistols em Manchester e o arrebatamento do punk, a formação da banda (que começou como Warsaw), a mudança do nome para Joy Division, etc, etc... Podemos dizer que nesse primeiro terço, Chapter and Verse coincide um pouco (mais em estilo do que em conteúdo) com Unknown Pleasures de Peter Hook - afinal, não podemos nos esquecer que o livro do baixista é inteiramente dedicado ao JD, ao contrário do volume escrito por Sumner, o que faz daquele mais rico em detalhes sobre essa primeira fase de suas carreiras do que este.

Todavia, a partir do capítulo onze, A New Sound In a New Town (trad.: "Um novo som em uma nova cidade"), que trata da transformação do Joy Division em New Order, Sumner resolve, inadvertidamente, alterar a maneira de contar a história. Ao invés de prosseguir com a narrativa linear, ano após ano, evento após evento, Bernard passa a relatar tudo o que se passou nas décadas seguintes por temas ou blocos de assuntos correlatos: como a cena de clubes de Nova Iorque contribuiu para definir a nova sonoridade da banda, detalhes sobre a criação e repercussão de "Blue Monday", como a banda "fez a América", "Haçienda + acid house + Ibiza + Balearic beat + Technique" e por aí vai. O problema com esse "método" é que ele resulta em um vai-e-vem no tempo que, além de contrastar radicalmente com o estilo apresentado no início do livro, pode tornar a leitura mais incômoda para o leitor não iniciado ou menos familiarizado com a história do New Order.

O livro também apresenta algumas lacunas que os fãs certamente considerarão imperdoáveis: não há uma linha sequer sobre álbuns importantes como Power, Corruption and Lies (1983) e Low Life (1985), e apenas uma parte ínfima do repertório do Joy Division e do New Order - nada além de 22 músicas no total - recebeu alguma atenção por parte de Sumner em termos comentários gerais ou detalhes sobre os processos de composição e gravação (temas clássicos como "Temptation", "True Faith", "Regret" e "Crystal" foram inexplicavelmente ignorados pelo seu próprio compositor). Da lista de canções contida no índice remissivo, a maior parte músicas não passou de uma mera citação no decorrer dos relatos do autor. Em outras palavras, a impressão que Chapter and Verse deixa para o leitor é que, enquanto as partes sobre a juventude de Bernard e sobre o Joy Division foram escritas com esmero e especial atenção,  as demais teriam sido feitas a toque de caixa.

Por incrível que pareça, Sumner se deteve mais em detalhes da época da gravação, lançamento e turnê do álbum Waiting for the Sirens' Call (2005), no capítulo 22, do que, por exemplo, em relação a um disco-chave como Brotherhood (1986) - que foi mencionado apenas por causa da capa, da qual Bernard disse ter gostado muito. Mas essa escolha parece ter um motivo: é a partir daí que B.S. começa a relatar os problemas de relacionamento com Peter Hook - ou, pelo menos, a apresentar a sua versão para a crise interna que havia se instalado. Os problemas com o baixista são mencionados também no epílogo do livro, que trata dos passos mais recentes do New Order, incluindo o lançamento do álbum (ou "EP expandido", como preferem alguns) Lost Sirens, em 2013. Sobre isso, Sumner escreveu: "Lost Sirens foi originalmente projetado para ser o álbum sucessor de Waiting for the Sirens' Call. Obviamente, desde então algumas coisas mudaram, de modo que Lost Sirens não saiu até 2013, uma década depois das músicas terem sido gravadas. Fiquei um pouco triste pelo fato de Lost Sirens acabar sendo lançado como um disco de sobras do Waiting for the Sirens' Call, quando na verdade ele não é, já que se trata de um segundo álbum, porém inacabado - inacabado porque, além de outras coisas, Hooky se recusou a vir para o estúdio para finalizá-lo e, depois, travou seu lançamento" (p. 291).

Trechos como o que foi destacado acima, além de outros comentários feitos por Sumner no prefácio e no epílogo, de fato servem de munição para Peter Hook e seus mais fervorosos defensores quando estes dizem que Bernard teria escrito Chapter and Verse com o intuito de justificar para os fãs porque resolveu "tomar para si" o New Order e, também, de tentar convencê-los de que a banda está melhor sem seu baixista original. Como o próprio Sumner escreveu, "Os últimos anos provaram ser os mais movimentados e bem sucedidos - e, de vários modos, os mais agradáveis - das três décadas de história da banda" (p. 04). Isso é que é cutucar onça com vara curta!

Guerras de versões à parte, a escrita fluida e agradável de Sumner acabou sendo comprometida pelos pecados cometidos pelo próprio autor - e que por sua vez não permitem que a obra sacie completamente (ou satisfatoriamente) a sede dos leitores. Todavia, essa primeira edição da Bantam Press, além de bem apresentada, traz ainda dois extras que, apesar dos pesares, fazem o livro valer alguma coisa para os fãs: uma entrevista de Sumner com Alan Wise e a transcrição, na íntegra, da famosa sessão de hipnose realizada (e gravada) por Bernard em Ian Curtis.