Peter Hook: herói ou vilão? [NOVO!]

10/06/2013 14:17

 

Em 2006, o New Order encerrou a turnê do seu oitavo album de estúdio, Waiting for the Sirens’ Call, com seis shows na América do Sul – cinco no Brasil e um na Argentina. Ao longo desses concertos, o (ainda) baixista da banda, Peter Hook, foi escrevendo em seus amplificadores partes de uma mensagem misteriosa. Cada apresentação trazia um trecho do texto completo escrito com tinta spray. Nem todo mundo que acompanhou essas performances sabia, mas “Hooky” sempre teve o hábito de “vandalizar” suas caixas de som com pichações que mudam a cada show ou turnê. Quando o grupo esteve no Brasil pela primeira vez, em 1988, ele escreveu “Guitar Nero”, uma homenagem á Steve Jones, ex-guitarrista dos Sex Pistols, que tinha escrito a mesma coisa em seus amps. Nos DVDs oficiais 3 11 e 5 16, o baixista pichou “Olá, mamãe!” e “Bye bye, Dee Dee” (uma homenagem à Dee Dee Ramone, que faleceu em 2002). Na passagem por Brasil e Argentina, em 2006, em cada show a inscrição do dia lida isoladamente não fazia o menor sentido; somente após o término da turnê é que se pode constatar que se tratava de um importante comunicado aos fãs: “Mr. Horse, once upon a time two boys started a group. It fell apart. The end”. Em bom português, ele quis dizer: “Sr. Horse [nota: sabe-se lá quem é esse sujeito], era uma vez dois rapazes que formaram um grupo. Ele se desfez. Fim”.

 

Não era tão difícil assim ter uma ideia de quem o do que ele estava falando. Estava se referindo, naturalmente, a ele e ao guitarrista e vocalista Bernard Sumner, que além de se conhecerem desde os tempos de escola, foram os fundadores do grupo que um dia se chamou Stiff Kittens, depois Warsaw e, finalmente, Joy Division (a “primeira encarnação” do New Order). E ao que tudo indica, Hooky parecia querer dizer, também, que a Nova Ordem estava chegando ao fim e que aquela era sua maneira de dizer “Adeus!” aos fãs. A atmosfera de despedida não ficou por aí. Nas entrevistas incluídas no último DVD da banda, Live in Glasgow, com os registros dos shows realizados na Escócia um mês antes da derradeira apresentação de Hooky com o New Order em Buenos Aires, o tom de fim de jornada ficou patente em diversas declarações, muitas das quais, inclusive, abordavam as perspectivas divergentes entre o baixista e os outros 2/3 do New Order original (Sumner e o baterista Stephen Morris). Os três ainda trabalharam por um tempo juntos compondo e gravando pequenos temas instrumentais inéditos para a trilha sonora do filme Control, de Anton Corbijn (uma cinebiografia sobre Ian Curtis, o finado ex-vocalista do Joy Division), e deram diversos depoimentos para o documentário de Grant Gee sobre sua lendária ex-banda (Joy Division), mas os ares eram mesmo de fim de festa. Porém, já em 2007 o clima voltou a esquentar...

 

Foi quando Peter Hook deu pela primeira vez uma declaração “oficial” à imprensa na qual dizia: “New Order’s split up!” (o New Order se separou). Isto não foi mais surpreendente que a réplica imediata dos outros, principalmente de Bernard Sumner: “O New Order não se separou. É uma decisão unilateral dele [Peter Hook]. E nós [Sumner e Morris] não nos separamos. O New Order continua. Então para nós, ele saiu, mas não quis dizer que estava saindo”. A reação do baixista foi, como se diz, “na lata”: “Eles não são mais New Order do que eu”, disse. E, no fim, arrematou: “Vejo vocês nos tribunais”. De lá para cá, muita coisa aconteceu. Sumner, ao lado de Phil Cunningham (que, a partir de 2001, substituiu a tecladista e guitarrista Gillian Gilbert, primeiro como músico contratado e, depois, como integrante fixo) e Jake Evans, vocalista e guitarrista do Rambo & Leroy, formou o Bad Lieutenant; Peter Hook naufragou logo na primeira viagem seu Freebass, um projeto de supergrupo de baixistas formado com Andy Rourke (ex-Smiths) e Maine (Primal Scream), e, em seguida, criou a banda-tributo The Light, com a qual vem fazendo shows tocando álbuns do Joy Division e do New Order na íntegra. Como cada um seguiu seu próprio caminho, apesar das farpas trocadas via imprensa, ninguém levou muito a sério as ameaças de ambos os lados.

 

 

Tudo começou a faiscar de novo, quase ao ponto de um princípio de incêndio, quando a imprensa anunciou que o New Order se reuniria para dois shows, um em Paris e outro em Bruxelas, em 2011, para arrecadar dinheiro para o tratamento médico de um velho amigo, Michael Schamberg, produtor dos vídeos da banda. Foi aí que veio a surpresa: a reunião seria mesmo sem Peter Hook. Para o reencontro, chamaram de volta Gillian Gilbert, desligada da banda por motivos familiares e pessoais há uma década (uma de suas filhas com Morris nasceu com uma doença grave chamada “mielite transversa” e ela própria teve que cuidar de um câncer), mantiveram Phil Cunningham e, para o lugar que era de Hooky, convidaram Tom Chapman, baixista do Rubberbear, que havia tocado com o Bad Lieutenant. Assim nasceu a atual formação do New Order, que não se contentou com a boa recepção desses dois shows beneficentes e seguiu adiante em uma turnê de verdade pelo mundo, o que confirmou acusações que Peter Hook fez na época de que a volta da banda seria para valer (e para ganhar dinheiro) e não apenas para ajudar um amigo doente. E de lá para cá a peleja entre Hooky e o atual New Order, que já está em estúdio compondo material novo, vem se intensificando a cada dia através dos jornais e da internet. E Peter Hook, num desses rounds, foi muito claro em uma entrevista concedida ao site Spinner na ocasião do reencontro do ex-colegas: “Estou determinado a foder o New Order de qualquer maneira”.

 

No meio desse tiroteio, pistas sobre a origem dos conflitos entre Hook, Sumner e Morris vieram à tona. O imbróglio entre o ex-baixista e os demais teria a ver, entre outras coisas, com a marca “Haçienda”, nome do lendário nightclub dirigido pela banda e pela sua ex-gravadora, a Factory Records, na década de 1980, que Peter Hook teria, nas palavras de Bernard Sumner, comprado “pelas costas da banda” em 2001 e licenciado, sem consentimento dos demais, para diversos usos. Mais tarde, quando os outros integrantes souberam que Leslie Gretton, viúva do ex-empresário do New Order, Rob Gretton, tinha ações do clube, tentaram comprá-las, mas Peter teria feito de tudo para impedir, alegando que lhe pertenciam. A crise no relacionamento, no entanto, teria se agravado durante todo o processo de produção, lançamento, promoção e turnê de divulgação do CD Waiting for the Sirens’ Call (2005), graças aos problemas do baixista com o alcoolismo e à carreira paralela de “DJ-celebridade”. Em várias entrevistas dadas nesse período, Hooky externou seu descontentamento com o disco que o New Order tinha acabado de lançar e sublinhou suas diferenças de ponto de vista com Bernard Sumner, que, em contrapartida, admitia abertamente ter ficado satisfeito com o álbum. Atualmente, o agora ex-New Order tem dito à imprensa que sua luta na justiça não é para impedir que Bernard, Stephen, Gillian, Phil e Tom prossigam usando o nome da banda, mas que ele receba o que considera ser sua justa parte pela contribuição dada. Agora quem está resolvendo esse lado da questão são os advogados e os juízes.

 

 

Se, por um lado, o filme de Hooky ficou queimado não apenas pela reação agressiva e, por vezes, egocêntrica (ele chegou a dizer que “New Order sem Peter Hook é como Queen sem Freddie Mercury ou U2 sem The Edge”), mas também pelo modo como vem explorando comercialmente o legado de suas duas ex-bandas através de livros, CDs e shows-tributos, por outro, muitas pessoas parecem estar de acordo com ele a ponto de defenestrar o New Order por “ousar” prosseguir sem seu baixista original, que uma parte significativa do público venera como se fosse um “Deus”. Para esses, o New Order se transformou num ser agonizante, um paciente em estado terminal a dar os últimos suspiros que antecedem a inevitável morte. Uma morte que, pelo menos para a ala mais “linha dura” da crítica musical, já teria ocorrido sob o aspecto criativo antes mesmo de Hooky deixar a banda.

 

Não é difícil entender porque Peter Hook tem tantos defensores, apesar de não ser exatamente um santo (e a verdade é que ninguém é nessa história). Quando a morte de Ian Curtis pôs fim ao primeiro capítulo dessa saga, foi Bernard Sumner quem assumiu os vocais da banda que deixou de ser Joy Division para passar a se chamar New Order. Mas Hooky era o membro mais carismático do grupo – e o único no time com pinta de rockstar. Era egocêntrico, falastrão, tinha um ar boêmio, barba por fazer, cabelos compridos e vestia jaqueta e botas de couro (em uma declaração dada no documentário New Order Story, disse “Acho que eu deveria estar no Bon Jovi”). Além disso, tocava baixo com o instrumento na altura dos joelhos, um estilo imortalizado por baixistas punks como Dee Dee Ramone (Ramones), Paul Simonon (The Clash) e, é claro, Sid Vicious (Sex Pistols). O sucesso do músico, no entanto, nunca teve a ver apenas com a imagem que transmitiu – ele também criou (de forma acidental, é bom lembrar) uma maneira única de tocar baixo. Apesar de simples, suas linhas de baixo “agudas” e melódicas se converteram em uma poderosa e inconfundível marca registrada tanto no som do Joy Division quanto no do New Order. Tudo isso fez dele o integrante mais requisitado para entrevistas – o que era bom para os demais, já que eles não eram tão chegados à imprensa – e, também, o herói de quase a totalidade dos fãs e admiradores do grupo. Daí porque tantos não conseguem aprovar a ideia de um New Order sem ele.  

 

 

Se ser tão à gauche dos demais fez de Hooky uma espécie de “tempero especial” na receita do New Order, por outro lado isso também explica um bocado as tensões que se desenvolveram dentro da banda ao longo dos anos. Ele era o único que gostava de tocar ao vivo e sair em turnês e isso era a parte da carreira à qual os outros definitivamente não eram muito chegados. As divergências, contudo, não param por aí. Hooky sempre foi o único a gostar do álbum de estreia, Movement, de 1981 (os demais, especialmente Bernard, desprezam totalmente esse disco). Outro exemplo: Sumner, durante algum tempo, chegou a dizer que achava o som do Joy Division “meio pesado de se ouvir hoje em dia”, enquanto Peter Hook lamentava o fato do New Order tocar poucas vezes antigos sucessos do JD (isso pelo menos mudou a partir de 1998). No finzinho da turnê de 2005/2006, ele desabafou sobre o quanto lamentava o fato do New Order não tocar mais ao vivo alguns dos temas favoritos dele, como “Age of Consent” e “Sunrise”. Enfim, durante muito tempo parece ter sido assim: Hooky de um lado e o restante do outro. Isso não os impediu de escrever conjuntamente canções sensacionais e inovadoras, mas certamente deve ter tornado o relacionamento deles mais difícil.

 

Todavia, não haveria um exagero por parte de alguns ao superestimar demais a contribuição de Peter Hook para o New Order? Afinal, a banda não era constituída apenas pelo carisma do músico e pelo som inigualável que saía das suas quatro cordas. A sonoridade do New Order se deve muito ao talento nato de Sumner como compositor de boas melodias pop e à obsessão dele e de Morris (que é também um ótimo baterista por sinal) por tecnologia – afinal a eletrônica é outra marca registrada no som deles. Daí porque os fãs podem esperar certo grau de qualidade do que vier desse “novo” New Order, ainda que tenham ficado para trás os tempos em que seus discos – singles como “Blue Monday” e “True Faith” ou álbuns como Low Life e Technique – produziam grande impacto musical e comercial. Além disso, é preciso reconhecer que, embora a ausência de Hooky sempre seja sentida, Tom Chapman vem se saindo bem o substituindo ao vivo e o New Order vem tocando competentemente versões admiráveis e renovadas de seus velhos clássicos sem o antigo parceiro, conseguindo, dessa forma, a aprovação das plateias que assistem a banda por onde ela tem passado. Não seria, portanto, maldade em excesso, ou ignorância mesmo, dizer que o atual New Order seria um “genérico eficiente” ou que não passaria de uma “banda-tributo” (interesses financeiros à parte, naturalmente)? Enfim, não há mal nenhum no New Order continar sem Peter Hook e, principalmente, prosseguir ostentando esse nome. Em primeiro lugar porque Hooky não construiu o nome New Order sozinho, e, em segundo, porque temos 3/4 do grupo original tocando juntos, ou seja, uma maioria simples (a metade mais um). E, para uma ala menos radical de fãs, algum New Order é pura e simplesmente melhor do que nenhum.

 

Obviamente, nenhum fã está contente com a saída de Peter Hook, mesmo aqueles que desaprovaram suas atitudes e que apoiam essa reunião do New Order (a despeito das vaias dos críticos). No fundo, o que todos gostariam, sem exceção, é que as coisas tivessem permanecido nos seus respectivos lugares. Mas, c’est la vie. Não podemos nos esquecer de que bandas são feitas de gente de carne e osso e não de mitos ou personagens – e pessoas reais, principalmente aquelas que vivem no mundo da bajulação e do dinheiro que o showbizz lhes oferece, possuem algo chamado ego, um negócio que, nesta era de individualismo e materialismo, é a medida de todas as coisas.